segunda-feira, 21 de março de 2011

O Suposto Fracasso do RPG Nacional, ou Tá Escuro Demais Pra Enxergar

Este artigo é uma contribuição a outro artigo pensado por Danielfo em Pensotopia e publicado em 20 de agosto de 2010.

Evidentemente o autor e seus contribuidores têm razão quando alegam a falta de criatividade em construir cenários nacionais para suas partidas de RPG, seja em qual sistema for. Entretanto, o problema é um pouquinho mais profundo do que aparenta ser.

Tudo começa com as fontes. Utilizar referências anglo-saxônicas para tematizar qualquer cenário é infinitamente mais fácil e mais divertido para qualquer grupo de jogo. Basta começar a citar o número de filmes/livros que se tem acesso que contam ao menos um pouco da história e apresentam imagens da Inglaterra por exemplo. Agora façamos o mesmo com relação à história e imagética portuguesa. Simplesmente carecemos de fontes.

Evidentemente não tenho afinidade nenhuma com o cenário de fantasia, mas é fácil compreender o porquê da afirmação de Batata quando diz que "Os reis da Inglaterra são nobres, os de Portugal são gordos abobalhados". Desde cedo somos condicionados a perceber portugueses como sujeitos com curta capacidade de discernimento e raciocínio, estigma que impede notar a nobreza portuguesa como uma nobreza - como qualquer outra da Europa feudal - voltada à guerra, sanguinária, dotada de valores cavalheirescos, hábil combatente (basta conferir a Guerra de Reconquista, no século XIII). Talvez eles não tenham tantas entidades místicas quanto os elfos, anões, gnomos e todo tipo de raça quanto os jogos que retratam um cenário fantástico baseado na cultura anglo-saxônica, mas certamente existem resquícios do encontro interétnico entre europeus e mouros. E o que dizer da piedade portuguesa? Dos cristãos novos? Dos conflitos entre nobres que forçaram seu rei a enviá-los para além-mar? Da conquista de Ceuta? Entre muitos outros eventos históricos que constituem o arcabouço cultural do qual somos herdeiros diretos?

Desafio dos Bandeirantes? É só uma das infinitas possibilidades de criação de cenários para sistemas (genéricos ou não) de RPG. O período de colonização é particularmente rico em exemplos (apesar de crer que um caboclo com sotaque cearense matando um dragão seja um tanto contradicente, pois deixa de lado nossa cultura para colocar uma criatura fantástica buscada lá na Europa para servir de antagonista para um protagonista local). Pode-se fazer cenário na colônia para explorar os quatro cantos do Brasil. No Sul (escrevo com mais facilidade dessa região), pode-se explorar bastante o conflito entre espanhóis e portugueses e a fronteira móvel que havia na região; no Norte, a conquista do rio Amazonas e o contato com indígenas hostis defendendo suas terras (isso abre a possibilidade de representar qualquer um dos dois lados do conflito); no Nordeste, as fazendas canavieiras e a relação com os escravos pode fornecer bastante material para construir algo interessante (melhor pensado por quem domine a história desta região). Não apenas aqui, a África e as colônias portuguesas lá fornecem algo para se pensar no tráfico de escravos... Um livro de história poderia ajudar nisso.

O que acabo de perceber disso? Desconhecemos nossa própria história. Por sabermos mais da história e da cultura de lá, temos mais facilidade de pensar coisas que acontecem lá, nos sentirmos lá, interpretar pessoas de lá. O colonialismo não terminou com o grito de independência.

Tratando de cenários contemporâneos, o caso talvez seja mais complicado. Não trata-se apenas de não ter subsídios para construir o cenário. Trata-se de estar imbuído de uma cultura que não se presta para a criação de dramas (principalmente no ambiente punk-gótico). Conhecemos bastante as regiões do país, mas estas imagens estão imbuídas do código das novelas, que não se prestam nenhum pouco para a construção de enredos de RPG, particularmente por explorarem ao máximo o estereótipo e a caricatura.

O horror pessoal, tema central de Vampiro: A Máscara, por exemplo, não consegue ser explorado com subsídios novelescos. Muito distante disso. Não imagino nada que uma novela possa subsidiar em termos de RPG. Infelizmente esse tipo de mídia tem muita competência, e consegue se infiltrar por todos os orifícios de nossa mente. Certa feita, jogando no Brasil, um jogador interpretava um assassino pernambucano chamado Valdir. A caricatura foi tanta, e não intencional, que acabou se tornando uma coisa engraçada, fugindo completamente do clima proposto para a narrativa.

Então, tentando contribuir para a problemática levantada por Danielfo, a questão não é adaptar os cenários aos jogos, e sim os jogos ao cenário, como está fazendo com Lajedos & Lagartos. Não se trata de mudar o nome da cidade e tentar adaptar o cenário à cultura brasileira. Trata-se de uma construção de enredos totalmente nova. O Mundo das Trevas no Brasil pode muito bem ser representado com "Tropa de Elite", tirando um pouco do heroísmo do Capitão Nascimento e deixando a podridão de toda a instituição policial apresentada na obra. Se o negócio é mais sombrio, confira o clipe de "Ratamahata" do Sepultura... é violento e completamente brasileiro. Também se pode fazer uma regionalização do país e construção de cenários específicos, como se tem feito nas edições "by Night" de Vampiro. Nem todas as cidades precisam ser compostas de Primigênies e Príncipes e carambas... elas podem ter sim sua singularidade (o que os projetos inclusos em Brasil by Night podem não ter conseguido alcançar, visto que todos tentariam aplicar a mesma fórmula política para suas cidades). Por exemplo: Los Angeles é uma cidade em caos, um caldeirão onde, mais do que nunca, reina a lei do mais forte; Nova York é uma cidade sem anciões, onde o mais poderoso vampiro é um ancillae Nosferatu que mal consegue manter seu refúgio seguro; Chicago arde em conflitos entre vampiros e lobisomens.... E aqui?

Rio de Janeiro, sob minha visão cheia de preconceitos e vieses, poderia ser uma cidade governada por uma elite de faxada, que não tem nenhum poder 'de facto', e que é governada por vampiros bestiais e hediondos, cuja perversidade moral é refletida em sua forma horripilante e que se refugiam em suas fortalezas nos topos dos morros. O Cristo Redentor, não importa de onde se olha, quando não está encoberto por uma densa neblina, aparece sempre de costas para a cidade.

São Paulo tornaria-se um caldeirão do inferno, com criaturas sobrenaturais de todos os tipos - inclusive os temidos kuei-jin, que poderiam ter uma outra nomenclatura para refletir os aspectos particulares da imigração japonesa no Brasil. Aqui a fórmula Príncipe/Primigênie poderia ter dado mais certo, mas o equilíbrio de poderes é bastante tênue, o que faz com que não exista um grupo hegemônico (o Príncipe pode não ser Ventrue, mas um Gangrel, que foi um Bandeirante há muito tempo, chamado Jorge Leão, que apresenta-se sempre acompanhado de outros dois vampiros, companheiros seus desde a colônia, uma Laibon e um vampiro indígena).

Porto Alegre, pra variar, seria um reduto de demagogos e falsos revolucionários, típicos Brujah iconoclastas; também reduto de Toreador boêmios que se deleitam com o furor verborrágico dos anarquistas, que gritam, gritam, gritam, mas nunca conseguem alcançar seus objetivos.

Enfim, inspirado por Danielfo, acredito que simplesmente fazer a transposição de cidades, com toda sua estrutura, é falha. Também não basta encontrar os lugares certos para as coisas certas. Tem de haver um fundo histórico, inevitavelmente, na construção do cenário que se irá utilizar. Isso traz profundidade à mesa de jogo, e pode apresentar algumas surpresas para os jogadores que acreditam conhecer cada palmo da cidade que utilizam como cenário.

5 comentários:

  1. Opa, muito interessante a idéia de ambientar o rpg nas terras brasileiras e afins, me encheu de novas idéias, muito bom mesmo tomara que outros se levantem em prol desta causa, afinal o Brasil é a terra inesplorada onde expedições levavam a monstros marinhos (até hoje, rsrs)

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  2. Cara tu disse o que berro a anos pra todo mundo a minha volta. XD
    Por exemplo. Tem um pessoal aqui em PoA tentando reerger os lives de vampiro. Como amo entrar nessas investidas topei mas logo no primeiro jogo perdi o ânimo. Era um jogo de mesa introdutório que os persnagens iriam pro live depois. Tá lá os vampiros reunidos pra resolver o que fazer com dois mendigos que viram uma luta de vampiros em que ARVORES FORAM ANIMADAS PRA LUTAR! e no meio disso o autoentitulado principe resolve sacar um sabre que A LÂMINA ILUMINAVA A SALA e decapitou os dois na frent de todos. A batalha do ents carniçais já doeu na hora mas um principe toreador sith com sabre de luz foi demais. Agora vejamos a cena final se tivesse sido assim:
    "O senhor dos toreador que almejava solidificar sua liderança nessa cidade levantou-se e ao olhar para aqueles coitados todos no recinto sentiram aquela súbita sensação de morte quando uma fera está para abater a presa. Então todos notam em sua mão o sabre ensanguentado, mas quando ele o sacou? Enquanto isso os olhos daqueles infelizes rolam assim como suas cabeças. Todos sentem o olhar dele e sabem que estão incomodamente subjulgados..." Bem melhor né?
    Eu descobri hoje o blog de vocês e adorei a iniciativa pretendo visitar direto^_^.Ah! E futuramente quero fazer um live de Réquiem e peço permição para usar de base as idéias que mencionou aqui até.

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  3. Cara, o despregar-se da realidade numa fantasia aberrante talvez seja um dos principais problemas de todo rpgista (por vezes achava que isso era particularidade de Rio Grande, mas cada vez me convenço mais de que o movimento é global). Isso é entristecedor. Enfim, o que foi postado aqui é "open source". Fica a vontade pra recortar, copiar, trucidar, transformar, aprimorar, melhorar...ar...ar...ar... Bem como o que mais fazemos: traduções. Elas tão sempre abertas pra novas e melhoradas versões.

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  4. Sempre que toco no assunto, "vamos ambientar uma campanha aqui, na serra catarinense, mesmo que como uma campanha curta e de teste" os meus jogadores caem na gargalhada e fazem piadinhas sobre esta proposta.
    Eu enquanto historiador (ainda não formado...) teimo em acreditar na proposta, mesmo que no fim das contas não vá dar em nada, ainda assim pode dar e seria algo bastante interessante!
    Alias, soube que já foi tentado por outro narrador antes aqui na cidade, mas pelo que conheço dele, deve ter sido outro cliche com carniçais ents, lobisomens em trajes galdérios de plateia e algum ancião sith...então prefiro não entrar em contato para evitar a decepção.
    Fico feliz em ver mais gente com a abordagem em suas respectivas cidades, na verdade, estou jogando uma campanha de lobisomem ambientada em PoA, mas o narrador é daquelas paragens, então ele coloca localidades reais e reambienta para a campanha. Esta ficando show de bola.
    A verdade é que vez por outra eu vejo mestres fazendo bons trabalhos nesse sentido, mas eles ainda são poucos, estão em bolsões isolados e normalmente são tratados com no minimo, desconfiança.

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  5. Sonado,
    Eu realmente lastimo a postura dos teus jogadores, de caírem na gargalhada e fazerem piadinhas sobre tua tentativa de ambientação na serra catarinense (a propósito, é onde há forte influência de colônia alemã?). Isso infelizmente é reflexo da mídia 'globalizada', que transforma tudo em piada e clichê, em estereótipo e em repetição ad eternum de fórmulas que deram certo. Nas últimas semanas estive entrando em contato com o movimento mangue beat, e comecei a ter uma perspectiva de Mundo das Trevas bastante interessante para o nordeste brasileiro. Mas continuemos nossas tentativas e nossos papos.

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